domingo, 1 de dezembro de 2019

o som do mar

O som do mar

Tudo era água e escuro. Ouvi a música. Ela contava uma história. Na história, eu nasceria, eu era de barro. O ar me moldaria, como as pedras, a areia e o chumbo. Eu veria no parque uma outra criança. Num aviãozinho de brinquedo que subia e descia. Os cabelos loiros, amante do vento. Eu desejaria ser livre, e flutuar. Eu seria expulso, da casa onde cresci. E iria pra um cortiço, eu moro nele. Eu era de barro, ao barro eu me fundiria. Meu corpo tomaria uma forma, tocada pelas pedras, as pedras arranham e cortam. O esqueleto se curva, e se distorce, ele é de água. O esqueleto dança, ele é de água. Os órgãos apertados em um vão, procurando um espaço, buscando uma dança. A pele é delicada, brutalizada, bruta. O desejo é gás, gás venenoso, eu nunca desejei. 300 anos se passariam. Eu conheceria o mar e ficaria encantado. Parado na costa, a água me molda. Eu fui desenhado. A geologia do corpo. Curvado, distorcido, inóspito, resistente à gravidade, premido por ela. Querendo escapar. De volta pra água e pro escuro. A música nunca cessa. O barro é sagrado. Sagradamente seria modelado. Um vaso torto guarda um cacto. Na janela de uma casa de pau e terra. Em um cortiço. Eu ouvi o mar. Eu fui envenenado. Eu jamais esquecerei.



Na madrugada, de volta pra casa, caminho olhando tudo o que o homem fez. Os postes, os portões, os prédios e a Cidade. Fogo e terra. Vejo um velhinho negro e sujo deitado na frente de uma loja fechada. Dormindo. Falando alto, delirante e com febre. Eu o toco e pergunto se tá tudo bem. Ele abre os olhos devagar, meio assustado. Olha em volta, retornando ao mundo dos vivos. Ao mundo dos mortos. Sua expressão muda rapidamente e ele sorri. Levanta as mãos, estala o dedo, e uma pequena chama surge da ponta de seu indicador. Ele me pede um cigarro, eu me agacho e dou um pra ele. "Ferro", ele diz, "Eu vi o ferro pela primeira vez aos três anos de idade, e tive medo, pavor, assombro".... "Aqui mesmo, passando com a minha mãe, de mãos dadas pra não me perder, olhei exatamente pra esse lugar onde eu estou e vi uma estátua de mim, feita de ferro. O corpo enrugado e encolhido. Não reconhecia nada, mas algo me disse o que eu já sabia, era eu. Os olhos quase se fechando, as pálpebras pesadas de ferro. Nem a chuva, nem o fogo e nem o vento me corroíam. Eu fugi, gritando e esperneando. Todos os dias depois desse dia, eu buscaria a água, eu buscaria os insetos, os animais, o campo, a terra marrom, os fungos e o trigo. Me mudei pra uma casa de madeira, perto de um lago. Morei lá por muitos anos, ali eu cresci, trabalhei, plantei meus próprios alimentos. Um dia eu te conheci e você dançou pra mim. A terra permitia que o seu corpo dançasse. Ela desejava que o seu corpo dançasse. Você não sabia de início, mas depois soube. Sua alma faminta, trincada, pesada. A terra te deixou flutuar. Ela nunca disse não. Você visitou a Cidade, os postes, os portões e os prédios. Você estudou a arquitetura de tudo o que foi erigido. Você estudou a mecânica de tudo o que abre e fecha. De tudo que se transforma. De tudo que foi transformado. A história de cada matéria presente no globo. Uma mitologia de você. Você desejou. Você teve. Um presente direto das estrelas. Uma mensagem formada na noite mais escura. Aqui é a sua casa. Proteção e abandono. A dor mais fulminante. O medo mais paralisante. Você se mexeu. Você dançou. Se tornou um ator, interpretando suas sombras. Tocando em outras sombras, milhões de sombras vivem aqui. Querendo ser ouvidas, vistas. Querendo existir, nem que seja um pouco. A sua boca sente uma sede natural pela água do rio da memória. As linhas são traçadas com nitidez, como teias de aranha, levando a outros tempos remotos. Ao momento em que você foi concebido, em que você nascerá e morrerá. O ferro derrete, o fogo é real. Uma vez eu vi a luz da lua, a lua se foi mas a luz ficou. Até hoje eu me lembro. Eu esqueço de tudo. Eu tomei a água do outro rio, do esquecimento. As palavras se perdem antes que eu possa terminar uma história. Meu corpo era de madeira, um mestre que me desenhou. Mas sua obra só ficou pronta quando eu me rebelei contra os seus desígnios. Nunca real, aprendi alquimia nos túneis e nos esgotos e me tornei ferro. Uma criatura espantosa, o mundo inteiro pararia e o Criador sentiria todo o terror e a culpa, a culpa pela criação. Quem prenderia uma criança num túmulo itinerante? Expondo ela a turistas e curiosos, matéria de livros e filmes, assunto em mesas de bar, em escritórios, nas arenas mais perversas e sutis do mundo. O homem de ferro. Um grande fenômeno, a minha maior obra. Mas lá, no túnel e no esgoto, haveria uma fila enorme, maior do que as que se formavam do lado de cima. Todos queriam fazer a transição. A vergonha dessa realização paralisava nossas línguas. Já estávamos sendo transformados, Já havíamos sido transformados. Lá em cima, o burburinho era antigo. E conhecido. Lembrei da minha visão. A estátua de ferro. As estrelas e a lua e os asteroides já sabiam. O médico que me tirou da água e do escuro já sabia. Minha mãe, a quem perdi, já sabia. Tudo sabe. Todos sabemos. O fogo não é real"
A pequena chama se apaga. Olho de novo pro senhorzinho que estava ali comigo. Mas só vejo um manequim, sentado nos degraus na frente da loja de roupas. Já é dia. Um menino que não deve ter nem seus 16 anos pega o manequim, abre a porta da loja e põe ele sentado numa cadeira que estava ali dentro. Observo pelas frestas. O rapaz é muito cuidadoso. Pega algumas roupas do estoque, um casaco, uma boina, óculos, pulseiras, sapatos.... Veste o manequim de forma muito hábil, em seu rosto nenhum tipo de emoção é manifestada. Ele percebe que eu o assisto. Vai até a porta e a fecha. Vou pra frente da vitrine, esperando o momento em que ele irá expor sua pequena obra, o corpo nulo. Seria perfeito.


segunda-feira, 15 de julho de 2019

Um breve encontro

:: Às 8 da noite, um espetáculo, não se atrase

Eu volto. Eu espero na estação. Faz frio mas estou suando por ter andado rápido. Na minha frente, todo tipo de distraídos, senhoras perdidas, moças interpretando cada passo, rapazes interpretando cada passo, olhando no celular, andando pra frente, parados no caminho. Meu único destino é a estação. Depois o trem. Depois a casa.
Na estação, cheia de pessoas cansadas e apressadas pra retornar aos seus destinos também, as suas casas, espero impaciente. A espera me entretém mais que uma leitura. Observar a espera dos outros me entretém mais do que a minha própria. Olho o relógio, o trem demora mais do que o normal. Olho pra alguém. Não tão rápido, de forma que eu possa sentir que estou ali. Não tão lento, de forma que ela perceba que estou ali. Uma luz, ao longe, cresce aos poucos, todos se preparam pra garantir o seu lugar, corpos se comprimem, bolsas em mão, bolsas nas costas, no peito. O trem, com as luzes internas apagadas, não para. Tento capturar alguma expressão sonora de decepção, como detalhe que preenche de vida o entretenimento banal que criei ali. Todos voltam a sua posição. Me volto pra direção de onde os trens vem. Mesmo nesses momentos eu interpreto. Interpreto alguém que tem pressa, através do meu rosto, dos meus gestos, meios pelo qual a minha verdadeira pressa não é capaz ou permitida de se manifestar. Viro meus olhos lentamente pra massa de pessoas que aguarda num ponto em frente ao meu. Todo mundo se habituou a sua entrada, por onde embarcar, por onde sair, qual porta lhe deixará mais perto de casa. Pouso meus olhos em um homem, não por nada em particular que me chame a atenção, mas de modo calculado. Sua aparente exiguidade se torna um traço desejável no processo de escolha de personagens que a minha complacência um tanto oportunista cria. Perguntas pré-fabricadas começam a se acumular na minha mente Quem é ele? O que será que ele faz aqui? Do que ele trabalha? Onde ele desce? Ele vai pra casa? Como é a casa dele? Ele tem alguém a sua espera? O que ele gosta de ouvir? Como ele se comporta diante de conversas fiadas? Como é ser um velho desimportante e ter alguém mais jovem que nunca olharia pra ele lhe dando tanta atenção, lhe levando tanto em conta? Nesse momento ele olha pra mim. Em um arroubo de coragem - uma pequena revolta contra minha própria natureza de me deixar desaparecer ao fundo e não ser notado - eu não viro os olhos. Continuo o encarando, tentando continuar com as minhas indagações, mesmo sendo claro que a concentração que a segurava havia se dissipado e, junto com ela, as palavras. Por um centésimo de segundo, eu não pensei mais no homem que me olhava, ou na minha própria presença, ou na noção de que cada músculo do meu corpo era agora analisado, friamente, em busca de uma razão, de um motivo, de um desmascaramento. Por um centésimo de segundo estive só com a rebelião a mim mesmo, com a consciência da minha impotência ao não conseguir resgatar as palavras que haviam me fugido, por estar subjugado, dissolvido por dentro, totalmente nu, destituído de qualquer existência interior, de qualquer paisagem, apenas uma voz vacilante numa sala branca. Essa noção me estremeceu, e o tremor atravessou a minha epiderme e escapou pelos meus lábios. Eu falhei.      Olhei rapidamente pra cima dele, pro relógio - não vi que horas eram - olhei pra massa de gente atrás de mim - não vi quem eram - olhei pra frente, o único lugar onde podia repousar meus olhos sem colidi-los com os de ninguém. Apenas a parede - não vi que cor era. Me esforcei pra testemunhar a parede. Pra me entregar ao teatro, me esquecer de mim. Burocraticamente, sistematicamente, corri meus olhos pela sua textura, seu material, suas cores, seu tamanho, tentei ler todas as informações que a parede guardava em seu cofre invisível. - Deve ser uma parede antiga. Quando será que foi construída? Porque esse reboco foi escolhido? Quantos estudos não houveram pra decidir que esse era de fato o melhor material? Quantos papeis, quantas conversas, quantas contas, quantas variáveis. Quantas pessoas foram necessárias pra levantá-la, quantas a levantaram sem nem sequer vê-la e partiram pra próxima seção, deixando ela pra trás, pra cumprir o seu papel de jamais ser observada, de desaparecer no fundo e ser esquecida também. De ser apenas uma parte daquele todo que parecia cumprir a tarefa tão nobre de separar o que existe lá fora do que existe aqui dentro, de barrar, de conter, de expulsar. O trem chegou, eclipsando a parede. A porta se abriu, eu entrei sendo empurrado. Todos correram pra garantir o seu lugar. Fiquei de pé, com a mochila entre as pernas, olhei levemente para os lados, pra ver se o meu observador ainda se entretinha comigo. Ele estava sentado, olhando no celular. Eu olhei pra parede de novo. Era só mais uma. O trem partiu, eu a esqueci. Não esqueci, no entanto, da outra parede. A que me colocou em frente daquela, em primeiro lugar.

:: Túnel

Era um vagão estranhamente silencioso, estranhamente frio para uma noite de clima ameno em um outono tropical. Meu teatro prosseguia. Na plateia, apenas um antigo convidado - imóvel nas sombras, seguro nas sombras - que jamais deixava o seu assento. Diretor e espectador. A próxima cena foi repetida inúmeras vezes ao longo de todos esses anos de viagens, com poucas e irrelevantes variações. Coloquei o fone no ouvido, deixei as músicas tocarem aleatoriamente, num volume baixo - meu corpo estava presente demais pra ser eclipsado agora.
Volta e meia retornava meus olhos para aquele pobre coitado, excitado pela prospectiva de cair novamente em sua teia, excitado por descobrir novas maneiras de desfazê-la, de escapar. Excitado por uma chance de recuperar meu orgulho. Um túnel. O trem entrou. O vento confinado produzia uma música violenta. As janelas estavam escuras. Um espelho se formou. O homem olhava para a escuridão. Eu olhava para a escuridão. Encontrava o seu reflexo. Era esse o lugar que eu procurava, um espelho bruto. Uma testemunha no escuro, mais uma vez espectador, e apenas espectador. A velocidade com que o trem atravessava o túnel criava um som altíssimo, que ecoava e reverberava por todo o vagão. Pensei ter identificado algumas vozes no conjunto de ruídos. Concentrei meu olhar no reflexo dele, e meus ouvidos no vento confinado, concentrei, olhei, ouvi. Ouvi mais. Um pequeno barulho, como o de ruído de um antigo rádio passa a ser escutado. No chiado, uma frequência meio humana, meio fantasmagórica. Algumas palavras começaram a ser içadas da turbulência ruidosa... "Esse é o rosto..." " Esse é o rosto de alguém soterrado, de alguém a quem faltou ar, não ontem, não ano passado, mas por décadas. Uma pequena reserva de oxigênio pra durar o quanto durasse. A vida pausada". Vento. Voz. "É o rosto... esculpido por uma existência vil, tenebrosa, assustada, parasita, esfomeada e mendiga.. De uma vida doméstica farsante, em frangalhos, da paródia do amor e da graça"; Voz. Vento. Outra voz. Mais aguda. "Os olhos. Veja bem. Uma existência soterrada. Não por dias, mas por décadas. Lá de baixo, apenas um feixe de luz. E uma brisa. A voz vacila, treme, as palavras, natimortas, desmancham antes que possam tocar o tecido do concreto. A ferrugem e o fogo esculpem o rosto, mas a brisa e a água esculpem os olhos". O túnel passa, o rosto desaparece. O vento confinado ainda reverbera, e aos poucos, vai se fundindo em cada pessoa que espera pacientemente naquele vagão.

:: Estação Barra Funda

O homem se levanta, quase cai por não ter segurado nas barras de ferro quando o trem para. Ele desce. Eu também. Não é aqui que eu desço. Minha casa é do outro lado. Em outra direção. Eu vivo em outra direção. Do outro lado. Há uns minutos atrás, decidi fazer um desvio. Uma decisão inconsciente, impulsionada pela minha distração. Todos descem. É o fim da linha. Seguro meus passos pra não andar tão rápido quanto meu corpo está habituado. Observo ele logo a frente, empurrado por uma dúzia de pessoas, desatento à pressa delas, lento e cansado. Retira o celular e começa a olhar enquanto sobe a escada. Minha pena só é superada pela repulsa. E assim continua por toda a estação. Lento demais, para mim. Começo a me arrepender de tudo isso e penso em voltar para a plataforma. Nesse momento, uma mulher passa ao seu lado, com uma calça legging e peitos enormes, consigo sentir o perfume daqui. Ele nem tenta disfarçar e se vira quase completamente pra olhar a sua bunda. Vejo que ele diz algo, bem baixo, pra si mesmo. Chacoalha a cabeça duas vezes e continua andando.
Estamos do lado de fora, a rua é movimentada, mesmo nesse horário. Vejo uns senhores reunidos nas mesas do lado de fora de um bar logo à porta da estação. Carros viram sem piscar, pessoas hesitam e continuam em frente na faixa de pedestres, buzinas. Conforme as ruas vão ficando mais escuras e mais vazias, ele aperta mais os passos. A distância entre a estação e o seu destino é meio grande, acreditei que alguém tão cansado pegaria um outro ônibus pra chegar lá. As poucas pessoas que nos acompanhavam nesse pequeno êxodo se dispersam lentamente. Pontos de ônibus com duas pessoas ou menos, faróis vermelhos sem ninguém pra atravessar. Estamos na avenida, em direção a um labirinto de comércios fechados e luzes de poste queimadas. Mais à frente, num local sem iluminação alguma, vejo levantadas algumas cabanas, cheias de moradores de rua, viciados de todo tipo, andando pra lá e pra cá, ocupando toda a calçada. Sinto um pouco de medo e decido encurtar a distância entre mim e ele. Me sinto protegido de certa forma, e gosto de pensar que ele se sente assim também. Ele vira uma rua antes do local onde estavam as cabanas. Fico aliviado. Não há absolutamente ninguém do lado de fora, tudo que ouço é o eco dos motores dos veículos passando na avenida, e quanto mais ele anda, mais distante eles parecem. Ao me dar conta dos arredores, percebo que a música que escutava havia parado, que o silêncio já vinha me acompanhando há algum tempo. Tiro o celular do bolso. Sem bateria. Percebo também como meus pés doem. Sinto, de repente, todo o meu corpo. É como se a peça tivesse acabado. Uma vergonha imensa, um medo terrível, minhas pernas latejam, minha garganta está seca, meu estômago faz sons estranhos. Passo debaixo da luz de um poste, paro por um instante e olho no meu relógio. Sou tomado de um enorme espanto quando vejo que faltam quinze pra meia-noite. Desisto por um instante de segui-lo ao pensar que as estações fecharão em quinze minutos, que não faço ideia de que caminho tomei. Volto uns passos pra ver se encontro alguma placa. Procuro desesperadamente por ela e não acho, nenhum número, nem nada. O homem vai desaparecendo na escuridão adiante. É preciso tomar uma decisão. Sei que não vou conseguir voltar para casa, nem mesmo para a estação. Confesso que meus olhos começam a ficar um pouco molhados, um desespero revoltado passa a me esfaquear por dentro, mas eu o seguro, o amordaço e jogo ele no porão. Ouço uma risada. Não sei de onde. Me sinto pequeno, cada vez mais pequeno. É verdade que agora o único jeito de voltar é esperar que ele se levante no outro dia, pra mesma rotina ridícula, e leve a mim, seu acompanhante invisível, de volta. Pra minha casa, pra longe dessa podridão, dessa escuridão que se espalha feito tumor, que se funde a tudo que toca, às estruturas, ao chão, às pessoas. Até a luz é fraca, de arder os olhos, as árvores são mortas, as paredes úmidas e sujas. Tudo o que eu detesto.... Penso ter ouvido de novo aquele chiado, e aquela voz, a mais grave, misturada ao eco dos motores dos carros que ficaram lá atrás "É o rosto..." chiado "soterrado, em julgamento, é..."...."a sonolência da atenção"... chiado, risadinhas. Tiro o fone e percebo que o perdi de vista. Vou correndo, com passos cuidadosos pra não ser visto, jamais ser visto. Sigo uma rua, vou até a esquina, olho para frente, para trás, volto, vou por outra rua, parece a mesma, tudo é igual, tudo é triste e hostil. Vejo essa viela, evitei ela até não ter outra escolha. Ela é ainda mais escura, mais estreita. Meu coração palpita de um jeito que eu não lembro de ter sentido antes jamais. Eu vou lembrar pra sempre dessa noite. Sigo reto pela viela, não é apenas estreita mas longa, uma fina camada de neblina vai se dissipando à minha frente. Lá está o homem, ainda lento, ainda distraído, nem sequer olha pra trás. Como eu detesto ele. Mais uns passos e ele para. A viela não tem saída. Bem no fundo dela há uma portinha de madeira, protegida por blocos quebrados e rodeada por uma espécie de cortiço. Casas que se amontoam, enclausuradas por outras portinhas de madeira e cadeados enferrujados. Ele entra pela portinha. Eu espero uns minutos e paro diante dela. Consigo observar pelas inúmeras frestas marcadas na superfície desse limiar medíocre, o seu abrigo, seu ninho, com suas lâmpadas fracas e amarelas se acendendo, trazendo com elas mais escuridão do que luz. Uma casinha minúscula, toda cinza e cheia de fungo, infiltrações, gambiarras, vidros quebrados. É impossível que alguém mais more aí. Essa casa foi feita à medida para ele. E apenas ele.

:: Banho, janta e CAMA!

Que dia! Minhas costas doem. Tiro meu casaco, ligo a TV e me deito no sofá. Minha vontade é adormecer aqui mesmo, de sapato e tudo. Expulso essa vontade pra longe em menos de dois minutos. Me levanto, vou até a cozinha. Minha esposa costuma deixar a janta pronta antes de sair pra trabalhar. Ela trabalha como enfermeira no turno da noite no hospital de Santa Cecília. Fez arroz, feijão, carne moída e salada de rúcula. Como duas colheradas de carne da panela e decido que é melhor tomar um banho antes. Subo a escada, tiro minhas roupas e ligo o chuveiro. Gosto de tomar banho com a porta aberta, pra já descer de roupão e jantar ali na sala. Coloco o jantar num prato, esquento no micro-ondas e mudo de canal pra ver o jornal da noite. Um terremoto fortíssimo, escala 7.8 atingiu a costa leste do Japão, apesar da força, pelo epicentro ter sido em um local distante do mar, o abalo não causou uma tragédia maior. Ainda assim, se tem indícios de que algumas estruturas foram rachadas e comprometidas, fala-se em pelo menos um morto, debaixo dos entulhos, sem confirmação. A repórter diz que o local do epicentro é quase uma antípoda exata do sudeste do Brasil. Volta pra mais um escândalo. A mesma coisa sempre. Sinto que estou preso no mesmo dia, todos os dias. Aquele abalo sísmico foi a coisa mais interessante de hoje. Desde criança sempre tive uma fascinação por catástrofes naturais, é meio ridículo admitir, mas sempre quis presenciar furacões, vulcões, tsunamis, a uma distância segura, é claro, sem tragédias ou nada disso, apenas aquele evento, único, assustador e até meio excitante, pra dar uma chacoalhada no dia... Mudo de canal e começo a ver um filme.
Se passaram 40 minutos, percebo que não vou conseguir assistir até o final. Meus olhos vão se fechando lentamente, eu os abro, eles permanecem atentos por uns segundos - se recusando a desistir do empreendimento que comecei - e se fecham de novo. Eu gosto desse jogo. Desisto e adormeço. Acordo de supetão ao ouvir um estrondo lá fora. Uma batida muito forte. Meio desorientado, muto a TV, vou até a janela e levanto com cuidado o canto da cortina. A janela é de vidro canelado e me esforço pra observar algo lá fora com nitidez. Penso ter visto uma sombra passar e aperto os olhos. Fico assim por um tempo. Consigo ouvir alguns sons, dessa vez mais baixos, como se tivesse alguém revirando os sacos de lixo lá da rua. Alguns cachorros começam a latir ao longe. Outros acompanham. Os latidos cessam aos poucos e logo param. Fico um tanto nervoso por ter tido o meu sono interrompido e sento no sofá. Continuo vendo o filme, ainda no mudo, sem entender nada de como a história chegou ali. O som constante do motor da geladeira me deixa levemente sonolento. Minha cabeça pende pro lado. Sinto uma pequena culpa de ter sono, de não estar fazendo mais com o resto do meu dia, de não estar avançando, em vez disso parado, amortecido, exausto. A culpa vai indo embora, os sonhos vão entrando. Um estrondo novamente. Dessa vez tenho a sensação de que foi mais perto, bem no portão de casa. Paro outra vez em frente à janela e fico observando. Vejo uma silhueta com formas aparentemente humanas, parada atrás de uma das grades do portão, completamente imóvel. Observo durante um tempo pra me certificar de que é real. De repente, a silhueta se move pro outro lado do portão. Odeio o vidro dessa janela, quero trocá-lo na primeira oportunidade que tiver. Aperto meus olhos e penso ter visto a silhueta se abaixando. Noto que minha respiração está ofegante e eu tremo um pouco. Sinto vergonha de mim mesmo e dou uma risadinha sonsa - como se tivesse alguém ali atrás de mim, me olhando - me desculpando, me desculpando e me defendendo pra um fantasma. Sinto mais vergonha ainda e, de uma forma inesperada, isso me deixa mais calmo. Mas o festival de auto-indulgência e auto-piedade é interrompido por um chiado débil que sai da minha TV. A programação entra e sai do ar. Nunca aconteceu nada do tipo antes. Aperto o botão de mutar e vejo que já estava mudo. Ainda assim, o chiado. Tudo começa a fazer sentido. Uns dias atrás ouvi dizer que um grupo de bandidinhos tavam saindo à noite e roubando os fios de telefone, TV e internet das casas. Como nunca vi, não levei muito a sério. Até agora. Pego meu celular pra ligar pra polícia, mas hesito. Não quero parecer afobado, precipitado. Sempre fui assim. Inclusive, ao ouvir a notícia do terremoto e me lembrar de todas as vezes que quis presenciar uma catástrofe natural, admito que uma voz, lá no canto da minha mente, me desafiava: "Em que momento, em que momento, num episódio como esse, você perceberia o que está acontecendo, o que está em jogo, e começaria a correr, a gritar, a pedir por ajuda. Em que momento você assimilaria a gravidade da situação?". Decidi esperar mais um pouco, pelo puxão da gravidade, mas antes que ela pudesse vir, todas as luzes de casa se apagaram.
Um calafrio correu pela minha espinha. Fui até a porta da sala em passos suaves e me certifiquei de que estava trancada. Fiz o mesmo com a porta da cozinha. Levantei a cortina da sala novamente e fiquei observando. A silhueta ainda estava ali. Provavelmente eram mais de um. Com certeza eram mais de um. Aquele ficaria ali pra avisar se eu saísse de casa, enquanto o outro, ou os outros, cortariam os cabos. Decidi que esse era o puxão da gravidade e decidi ligar pra polícia.
Passei meu nome, meu endereço e informei o que estava acontecendo, e minhas suspeitas de quem eram e o que queriam. A atendente me disse que uma viatura chegaria em dez minutos, pra eu me certificar de que todas as portas estavam trancadas, subir até o meu quarto, pegar algum objeto pra me defender e me esconder debaixo da cama ou em algum armário. Para, em hipótese alguma, confrontá-los, já que eles poderiam estar armados e em um número maior do que aquele que eu imaginava. Subi as escadas e fui até meu quarto. Notei que, desde que cheguei do trabalho, não havia entrado lá. E me assustei ao perceber que o uniforme da minha esposa estava na cama, preparado, como ela costuma deixar minutos antes de se trocar e sair. Vi também que a janela do quarto estava aberta e fui tomado de um pânico imenso, quase paralisante. Fechei a janela com cuidado e liguei pra minha esposa. Ou pelo menos tentei. Eu não conseguia acertar o número de jeito nenhum. Digitava números a mais ou a menos,  digitava o nome errado todas as vezes - Clara - Cllara, Clra, Lara, Allca, Clar, comecei a sentir uma falta de ar e lágrimas se esforçavam pra não correr dos meus olhos. Sentei na cama, respirei, digitei pausadamente cada número e liguei. Alguém atendeu "Clara, tá tudo bem?" Ninguém respondeu por um tempo "Clara?? Clara? Onde você tá?"... Um chiado sutil, então uma voz "Alô..."... Mas não era a voz dela. Onde tá minha esposa? Quem é que tá falando? Clara? Cadê a Clara? "Eu sou a Clara, quem é?" "Clara, você deixou seu uniforme em casa? Você não foi trabalhar? Onde você tá? O que aconteceu com a sua voz?". Uma risada, percebo que ela está num lugar cheio, ouço mais gente falando, uma comoção ali atrás, depois de um tempo sem dizer nada, a voz retorna "Veja bem. Os olhos..." Silêncio novamente, chiado. A ligação cai. Sinto um terror tomando conta de mim e minhas pernas enfraquecem. Olho pra janela e vejo um rosto. Um rosto... colado ao vidro, sorrindo com dentes enormes pra mim, indistinguível da própria escuridão. Mal consigo compreender o que está acontecendo, quando o rosto desaparece. Olho de novo pra janela e não vejo mais nada, começo a me questionar se realmente tinha algo ali em primeiro lugar. Ligo outra vez para Clara, mas ninguém atende dessa vez. Ligo de novo, e de novo e de novo. Nas primeiras vezes ele tocava até o fim, agora nem sequer chama. Me dou conta que muito tempo se passou desde que chamei a polícia, então ligo novamente. Demora até eu ser atendido, explico o que aconteceu pela segunda vez - é a mesma atendente de antes - e questiono porque ninguém chegou até agora. Ela me corta "A gente não vai conseguir mandar nenhuma carro aí agora. Estão todos ocupados... Meu senhor, eu peço que você aguarde debaixo da cama. Não deixe a sua casa de maneira alguma.... Meu senhor, meu senhor. Eu entendo que é grave mas o senhor tem que entender que o seu caso não é nada perto do que aconteceu. Todas as equipes estão ocupadas. A gente tá recebendo muita ligação, todas mais urgentes." Mas o que aconteceu, pelo amor de Deus? Eu suplico. "Meu senhor, o incêndio... nas estações. As estações foram queimadas... Meu senhor, os ônibus. Eu vou pedir pro senhor desligar e fazer conforme o orientado. Eu peço que o senhor libere a linha". A ligação caiu. Consternado, deslizei vagarosamente da ponta da cama, onde sentava, até ficar no chão. Consternado, fui me arrastando pra debaixo da cama, em choque, em indignação, em descrença.

Ali debaixo, continuava tentando ligar para Clara, perdi a conta de quantas vezes. Tentei ligar pra outras pessoas e vi que não conhecia ninguém. Ninguém que me importasse, ninguém pra quem eu abriria essa porta, a porta que dá acesso à minha nudez, ao meu soluço, à minha voz que gagueja. Procurei na internet sobre o incêndio, havia várias notícias de incêndios, incêndios em diversos lugares do Brasil, em comércios cujos donos negligenciaram a manutenção das fiações, em casas cujos moradores esqueceram o gás ligado, a lareira, uma vela. Incêndios criminosos, incêndios acidentais. Vi fotos de um homem que havia colocado fogo em si próprio. De outro homem que pegou fogo sem qualquer explicação. Pessoas que juravam de pés juntos que tavam lá quando aconteceu. 'Do nada, as chamas começaram a correr pelos seus braços, pernas, até engoli-los por completo'. Vi relatos de membros que permaneciam intactos em meio às cinzas. Não vi nada, porém, sobre o incêndio das estações, dos ônibus. Talvez fosse recente demais, os jornais deviam estar recebendo a notícia agora. Foi no meio dessas indagações que ouvi o vidro da janela lá de baixo se quebrar... Ouvi o vidro da janela se quebrar. Estilhaços, passos sobre os estilhaços. A janela se abrindo. Com violência. Eu nunca senti tanto medo na minha vida. Pensei como me defenderia mas não tinha trazido nada comigo. Droga, a policial tinha falado pra eu levar alguma coisa antes de me esconder. Eu sou um idiota, um burro, um distraído. Tenho medo de sair debaixo da cama e procurar. Ouço os passos se aproximando. São leves e rápidos. Parecem os passos de alguém decidido, determinado a chegar em um lugar, com um objetivo claro. Parecem os passos que ouço nas estações e nas ruas todos os dias, passos apressados, atrasados, ávidos pra chegar ao seu destino. Ouço eles já próximos da porta do quarto, até que param. Por debaixo da cama, consigo enxergar apenas uma silhueta, imóvel. Ela sabe que eu estou ali. Começo a chorar silenciosamente. Eu nunca chorei tanto. É o choro de uma vida inteira, de anos em que eu hesitei, em que eu segurei, impedi que qualquer tipo de lágrima caísse desses olhos. Começo a lembrar, sem controle, de toda a minha história até aqui, do momento em que vi o mundo pela primeira vez, em que quis tocá-lo, em que quis mais dele, até quando senti que o havia dominado, conhecido por completo, desmascarado toda a opressão dos seus supostos mistérios. Me senti injustiçado, humilhado, uma humilhação de décadas, soterrado por elas, nunca capaz de levantá-las, de expressá-las, aguentei tudo, tudo sozinho, sem qualquer testemunha, sem qualquer consolo, respirando calculadamente por anos, pra conservar o pouco ar que me restava, gestando dentro mim a semente de uma força, uma força forjada na terra, na areia, na ferrugem e no sangue, uma árvore com sua copa gigantesca que cobria o céu das cidades, um abrigo contra o sol escaldante que roubava diariamente a água de milhões de corpos, suados e exaustos, embrutecidos, orgulhosos. O orgulho, o orgulho, meu único filho, minha única obra. Injustamente tirada de mim, toda a minha história, toda a minha existência. A sombra se aproximou. Eu não quis sair. Senti uma vergonha terrível, uma criancinha, molhada de mijo e de choro, minha água sendo roubada de mim. Fechei os olhos com forças. Senti a sombra se aproximando mais e mais, pude ouvir sua respiração. Anormal. Não é desse mundo. Um calor terrível acobertou todo o quarto, cada vez mais quente, mais quente, mais perto de mim, meus braços ardiam, eu me recusei a abrir os olhos. Vê-lo era ser vencido. Eu me recusei a ser vencido. O fogo tomou minhas mãos primeiro, depois o meu peito e então a minha cabeça e o resto do meu corpo. Exceto pelos pés.

:: Estranho amigo

Essa noite é diferente. Olhei no relógio. Eram ainda duas da manhã mas o céu estava quase violeta: O sol nascia entre os prédios, o horizonte ocultado por aquelas naves gigantescas paralisadas no espaço. Singelos raios de luz tocavam a névoa e iluminavam o chão e as paredes daquele cortiço. A lua, cheia, ainda brilhava no alto do céu, seu reino sendo invadido por um estranho amigo. Que fenômeno maravilhoso. E todo mundo dormindo, tendo sonhos que jamais seriam capazes de imitar o esplendor desse milagre. Olhei pra fresta na madeira do portãozinho de novo, e olhei praquele homem. Desde que acendeu a fraca luz da sua casa, ele me viu. Me viu no portão. E ali ficou, imóvel e atônito. Toda a raiva que eu sentia por aquela pobre alma e todas as outras iguais a ela desapareceu em face da aurora inesperada. Abri o portãozinho e depois a porta. Tava trancada. Fiz alguma força e ela abriu. Ao entrar lá, vi que a casa não podia ser mais que um quadrado. Quarto, sala, banheiro e cozinha no mesmo lugar. Ele olhava com terror pra mim. Eu quis confortá-lo mas parecia que todas as vezes que eu tentava ele se encolhia ainda mais. Peguei nas suas mãos. Completamente submisso, humilhado e destituído de qualquer orgulho. Saímos os dois pelo portãozinho, parados ali, no final daquele beco. Eu jamais iria imaginar que era o mesmo lugar por onde havia atravessado a noite. A luz violeta, dourada e prateada, banhava tudo. Ficamos ali em pé, por vários minutos, observando o Sol se levantar, como fazia todos os dias, sem qualquer noção da sua inconveniência arrebatadora. Do meio dos prédios, ele brilhou. Não tive qualquer vontade de piscar e continuei olhando, bem no centro, no centro do Sol, até que tudo ficou branco. Levei minhas mãos até os olhos pra protegê-los. Ao tirar, vi aquele velho espectador, irresoluto em seu assento. A expressão misteriosa sempre resguardada pelas sombras finalmente se deixou ser vista, nua, raquítica, estremecida e soluçando. O homem estava ali sentado, assistindo tudo, desde o início. A luz brilhando sobre mim, e não sobre ele, e, ainda assim, era ele quem sentia a vergonha, uma vergonha intensa.

sábado, 29 de março de 2014

quíron

Orquídea

A minha pele, que coisa. Eu olho pro meu braço, um caroço imenso, com pus saíndo e muito sangue encrostado, eu olho bem e vejo uma dançarina vermelha com vestido de noiva, dançando pelo vento, seu véu é fino demais pra resistir. Eu corro meus olhos, um corte, não profundo mas eterno, a pele que cresceu ali é diferente, é a pele de um homem bem bonito e jovem, seus olhos refletem a lua, seu cabelo é quase o oceano, sua boca é outro oceano só que de fogo e ele também dança, em torno de si. Meus olhos correm pelo meu biceps onde há uma cicatriz de uma facada que eu dei em mim mesmo pois ninguém admitiu a culpa, e é tão bela, como é bela. Me lembra o nascimento da terra, se precipitando do útero do espaço pra respirar todo o ar que ainda não tinha. Que bonita. No meu ombro falta um pedaço, mas tudo o que falta ao menos há de se completar, e por isso eu preencho o espaço com flores, orquídeas. Orquídeas subindo e se embrenhando no rombo que existe em meu coração, que me faz lembrar que sou homem, uma memória que me foge pelo buraco na testa que se abriu quando disparei o revólver. Entre o meu peito o infinito espaço e é ali que tudo de bonito nasce. Uma ave do paraíso surge por si só e dança majestosamente, impiedosamente, e eu a noto, eu a quero. Asteróides da grande destruição aproximam-se e eu pinto atmosferas em suas superfícies pra que girem como os planetas. O líquido negro que corre do meu fígado logo abaixo pavimenta o chão pelo qual ando e pinta as paredes que me observam. Lindas figuras surgem, me lembra o cosmos de novo. De novo e sempre. O negro se junta com o vermelho do sangue que escorre das minhas tripas que agora pertencem a porção externa de mim. O intestino se desdobrando pelas minhas pernas, como correntes, correntes de paixão, cheirando como as orquídeas, e eu sinto. Eu sinto. A dor. A vida. Eu deito no chão, colorido de vida. E danço sobre ele, observando as estrelas, prestes a morrer. O medo é uma bobagem, a grande mentira da vida. Eu estou vivo.


o reino mineral

Eu tenho certeza que eu já andei por aqui, o que tá acontecendo com a minha cabeça parece que tudo tá tentando fugir mas ao mesmo tempo tudo tá tentando impedir essa fuga duas forças poderossímas estão agindo sobre a mesma matéria. Uma vez eu lembro de um lugar em que eu vivia, numa grutinha com uma casa bem bonita de madeira ao lado dela, mas de fato eu nunca a vi, pelo menos não até o dia da passagem. Até esse dia, a passagem, eu via apenas pela fresta que tinha, e era dela que vinha a luz da manhã e batia num pedregulho lá de dentro e formava a imagem de um leão no solo e eu o respeitava. E como um leão falava minha mãe, que possuia o dom da profecia. Teve esse dia em que eu vi a morte durante uma noite de sono, se movendo magnificamente como a vida e eu tirei sua túnica e ela se mostrou, da vida herdou a beleza também, que me paralisou por completo em seu encanto, Quando acordei, me faltou o ar e, devia estar muito escuro lá fora porque faltou o leão também e meu espiríto me guiou até a fresta, ao mesmo tempo ele dizia com palavras pouco compreensíveis mas que agora eu entendo mais, ele dizia sem parar "isso não pode tá acontecendo" e dizia " Porque eu não fui avisado antes?" e eu respondia "do que você tá falando" e ás vezes ele voltava " Não adianta eu te dizer agora". Eu fui na fresta e senti uma fraquissima corrente de ar e esfreguei meu nariz ali. Desesperadamente. E assim, nas trevas, algo mágico ocorreu, mãos de lá de fora acariciaram o meu nariz e tinha o cheiro maravilhoso de eu não lembrava o quê. E aos poucos a fresta foi ficando maior. E o ar entrava então, primeiro de leve, depois violentamente. O que era plenamente escuro se mostrou cinza e o sol detrás das cinzas batia com rigor nos meus olhos, que se fechavam. 'Você pode me ouvir?', eu perguntei pras mãos, que apenas sorriram. E de novo dizia a voz do caos formada por ruídos compostos no interior do espírito "Eu não acredito que isso tá acontecendo, não pode ser". Eu olhei pros olhos das mãos. Elas devem ter se encantado por que me olharam de volta por horas. E tudo o que não existia antes em mim, passou a ser percebido. Elas me seguraram com delicadeza, e me levaram até a margem de um lago próximo e então disseram, com a voz da ordem formada pela harmonia composta no interior do espírito " Pergunta e olha pro lago " e ali me deixaram. Eu observei o lago, refletindo o céu, cantando uma canção que lembra o nascimento e a morte e eu vi o reflexo e nesse reflexo o meu rosto finalmente foi visto e a voz de sempre voltou e perguntou" Tá acontecendo então, o que eu faço agora?" e depois na sua serenidade incomum o lago respondeu " Tenha calma ", enquanto eu observava nas suas águas duas orelhas peludas e imensas se refletindo e dois dentões bem engraçados e assustadores também e finalmente a cor dos meus olhos.

Janus

Uma vez eu tava tomando banho e passei a mão pelo meu cabelo pra massagear e eu senti uma boca, eu apalpei pra ver o que era e senti um nariz e dois olhos e um rosto inteiro. Eu ia dizer algo mas ele falou primeiro "Bem", " Tem algo acontecendo aqui ", "Você é um câncer", "Um câncer que surgiu deve ter sido nesse dia em que eu entortei minha própria coluna para carregar o peso do medo",  " E como um cavalo eu o levei ", "Sabe, eu tinha muito medo da dor", "Porque eu sentia ela bem forte", " E como eu era tolinho", " A dor trazia a desordem, eu pensava", " A desordem já existia, desde sempre, eu vi depois", "Alguma coisa aqui não me cheira bem", " Um dia eu fui num velório, e estavam todos chorando", "Eu olhei pro cadáver e ele estava rindo", "Deve doer muito pra um bebê nascer, mas deve doer mais na mãe", " Eu soube de uma história onde uma mãe nunca ouviu o choro do seu bebê, porque seu próprio grito foi muito alto e longo", "Demais pra ser ignorado", "Uma vez eu fui no santuário, e estavam cultuando um cadáver", "E o cadáver estava chorando", " Apodrecido", "Santo", "Uma legião saíria dali, aos poucos", " E jamais falariam nada mas balbuciariam - ' o Sol queima nossos olhos'". "Nós precisamos andar", "Eu preciso da sua voz, e dos seu olhos e da sua memória" , " Eu preciso que você me ame", "Do contrário, ambos morreremos"

sábado, 23 de novembro de 2013

teve um dia que eu percebi o que não pode

é claro agora. A divisão, a separação. O inferno de dentro, com o seu senhor convicto de dentro entoando uma canção alegre com o inferno de fora e seu senhor convicto de fora. A mentira de fora como água negra entrando pelas vias que leva até a fonte primeira. Fonte inesgotável. Fonte impertinente. A sujeira de dentro saindo pelas mesmas vias, o homem viu e pôde escolher, a vazão ou a represa. Na represa, a morte, deitada sobre as águas, seu sangue são as águas. Tudo é afogado. Desde o primeiro minuto. Quem se afoga na morte jamais morre de fato. O ouro no fundo da terra, o suor da busca. O homem só é homem quando busca o ouro. O homem só é homem quando encontra o ouro. O homem só é homem quando rejeita o ouro. Aquele que jamais segurou o poder nas mãos, embriagado pela forma que toma as mãos, aquele que embriagado pela renúncia ou pela ira se deita no próprio nascimento enquanto contempla a própria destruição. O que existe de horizontal no contato e que aspira a verticalização. O homem sabe.

sábado, 12 de outubro de 2013

texto

Mas é tamanha a fibra que se dispõe no menor espaço de medidas que o mesmo que se diga da terra irá se encontrar em termos distintos e tudo o que se pode hoje ponderar terá seu respectivo limo nas mais gloriosas tarde do amanhã e é porque a luz condena aqueles que foge do exílio que haverá festa quando se puder sorrir em amragos goles tanto que quanto maior for o mesmo em si nada terá que cobrar daquele que hoje olha pro céu e nessa mesma concepção o porte do pequeno homem se revela como um adjunto de sua árvore contrária numa espécie de mesclagem entre o que é há e o que não poderá existir e colocando um pouco de remédio na história de onde veio aquele que uma vez olhamos para trás e descobrimos que estava há muito tempo esperando de onde veio a idéia de que se eu mexer esse dedo o dedo pensará ter sempre o poder de mover-se é nessa linha finíssima ( uma linha finíssima) que toda a gente deita-se no mais frio dos dias e olha eu digo que talvez esse dia nem seja assim tal qual se diz o importante é que no meio da corrida a roda estacione em trechos elípticos  de maneira que simulando uma volta pelo sítio o console principal se torne o que hoje acredita-se ser o dono do consentimento porque toda furia ainda não é muita fúria mesmo que triunfante reine o principio do vento seja sua a inércia indefensável e pobre como uma pequena sujeira que se sobressai em meio a um disco de imagens flutuantes numa aurora negra: o antes. O antes. .,.,.,.,.,.,.,se eu fosse você numa tabela de sentidos vamos supor que tudo o que houve até hoje se fez só por causa da interrupção dos fatos e que os pequenos mãos não se saibam um do oturo a menos que posam em pequenos atos escrever aquilo que se passa na cabeça sem pensar em nenhuma regra que havia antes da grasnde vontsde a grande vontade é tao grande que nenhuma palavra será jamais suficiente para falar de sis só nenhuma lingua podera expressar e ainda asisma  votmnade se prende na lzingua a vionta de se prenfde nio antes no nó na regr aa regra a regra a velopcidade oi dedo e a amente

domingo, 4 de agosto de 2013

o grande abraço

Uma vez, durante vários dias, na tenra idade, eu vi o futuro e no futuro havia um pequeno monte e em cima do pequeno monte eu parava e ao parar eu olhava pra cima porque o vento soprava no meu ouvido e me pedia para olhar e eu ouvi o vento e olhei e quando olhei os meus olhos ficaram brancos e as minhas mãos se abriram e a minha boca se abriu e as nuvens se fecharam e das nuvens vieram raios que caíam na minha testa e espalhavam fogo pela minha cabeça e vieram trovões que junto com o vento misturavam todas as palavras pra que elas parecessem sempre a verdade e veio também a chuva que entrou na minha boca aberta e no meu nariz aberto e ao entrar inundou o meu corpo que começou a tremer e da minha boca aberta e do meu nariz aberto se expeliu toda a água e à minha frente e por detrás de mim vinham pessoas carregando baldes e enchiam seus baldes com a minha água e assim a usavam para tomar banho em certos dias.

:Cipreste

Uma vez, na idade edênica, eu abri um livro e no livro dizia que meus pés não pertenciam ao chão. Nesse mesmo dia recebi uma visita, através da janela e fora do chão, de um homem grande com um manto branco e com olhos também brancos e ele ofereceu suas mãos e eu as peguei e ele me envolveu em seu manto que o permitia flutuar sobre a cidade, os campos e as montanhas. Sobrevoamos todos eles e pude ver as florestas como um todo e a cidade como um todo dentro da floresta e todas as montanhas como parte de um todo sem fim. O homem tocou os meus olhos e o que não tinha cor ganhou cor, ele tocou meu ouvido e o que era mudo passou a dizer, ele tocou minha boca e o que era mudo passou a dizer. Nós descemos e eu vi um campo como nenhum outro campo e me lembrei do cheiro que suas flores exalavam e perguntei 'porque me lembro desse cheiro?' e ele respondeu que no parto junto de mim nasceu também o campo e suas flores e a montanha e as florestas e a cidade e o mar. Ao dizer isso ele sumiu

ao sumir eu quis voltar mas não soube o caminho

continuei andando pelos campos então, onde tudo era diferente do que eu conhecia. Andei por vários dias e por vários anos e temi que não houvesse fim....
Avistei um cipreste bebê e uma grande panela na minha frente sobre a boca de um vulcão e dentro da panela não havia nada dentro. Eu procurei pelo campo interminável a luz e os vegetais e os animais e os peguei todos e os cozinhei. E fiz isso por várias horas e na hora mais ensolarada da tarde senti uma fome imensa e passei a comê-los crus. A minha barriga ficou grande e a fome ficou maior. Eu deixei a panela e continuei andando, porém uma singela bruma foi se tornando mais espessa e à minha frente se abriu um grande precipício de cujo interior brotavam águas violentas que atingiam uma altura imensa, acima das nuvens. Eu senti medo e, do cipreste que havia encontrado uns passos atrás, extrai a cepa e com a cepa construí a minha casa no fim do campo sem fim e com mais cepa e barro envolvi as paredes da casa para que não entrassem nem a névoa nem a água.
Durante vários dias estive na casa até o dia em que ela se pareceu com a casa onde eu morava antes. Um sono insólito se abateu sobre mim e eu dormi e sonhei com um cavaleiro que trazia consigo caixas e deixava todas na minha porta, com um selo. E eu não entendia o que estava escrito lá. Eu coloquei as minhas coisas dentro das caixas vazias e esperei que ele voltasse. Ele voltou e ateou fogo em todas elas. Depois tive um sonho em que eu vinha de longe portando um relógio maciço de ouro, e me via dormindo, e colocava as mãos em meu próprio rosto e o afagava e o pedia que acordasse. E depois eu me lembro de ter acordado. E minha cabeça parecia ter se fundido à cama e a cama parecia ter se fundido ao solo e os meus olhos estavam colados mas meus ouvidos podiam escutar tudo e eu passei a ver figuras com meus olhos de dentro e entre essas figuras eu vi homens inocentes e eu vi o pai de todas as criaturas vis e uma estátua de um vampiro com trajes de santo mordendo sua própria boca e cuspindo sangue sobre os homens. Eu me dirigi até o lugar onde o som estava mais alto. Eu ouvi o som da águia e o som da cachoeira e eu fiz bastante força para que meus olhos se abrissem de novo. E eles se abriram o suficiente pra que eu visse a minha casa destruída e a panela vazia e a barriga vazia e o campo novamente à minha frente. Eu olhei ao redor e não havia mais ninguém.

:O que houve no bosque

Eu passei a procurar o que havia visto no sonho. É sagrado, disse a sequoia. Passei a procurar nos bosques o que havia visto no sonho mas nada se parecia com aquilo. Eu perguntei pra sequoia gigante se ela havia visto e ela pediu que eu desenhasse na areia e eu não consegui desenhar na areia. Ela pediu que eu desenhasse na folha e eu não pude desenhar na folha e ela pediu que eu desenhasse com a sua seiva e eu não pude desenhar com sua seiva porque sempre surgia a imagem de uma tartaruga ou de uma erva daninha. A sequoia gigante disse que muitos homens chegaram até ela com a mesma história, sobre uma visão pela qual certa vez foram acometidos e ela apontou com seus galhos para uma direção dentro do bosque e disse 'é pra lá que foram os homens'. Eu hesitei e fui pelo caminho contrário, e no caminho contrário uma sequoia gigante gêmea surgiu e apontou seus galhos e disse 'é pra lá que foram os homens '. Eu me enfurnei pelos arbustos e pelo pântano seguindo os homens que tinham sumido em seus labirintos. As folhas das árvores passaram a cobrir o sol e eu não soube mais se era dia ou noite e tudo passou a ficar úmido. Eu toquei no tronco de uma videira e uma flor se abriu e dentro dessa flor estava uma garotinha com as pernas fundidas ao estigma da flor e ela alisou o meu cabelo e passou a chorar e eu disse 'não chora' e ela disse que havia uma história que se contava naquele pântano e ela me contou a história e, ao contar, grãos de pólen pulavam de sua língua. 'Um lago', disse ela ' um lago estava calmo, suas águas alimentavam os animais e as plantas, uma vez a noite foi anormal e uma estrela imensa brilhou com muita intensidade e refletiu no lago e a água do lago se comportou como as águas do mar e fez ondas e depois um sorvedouro que assustou seus peixes que começaram a pular e cair pra fora das águas e lá se debatiam e os animais famintos saíram então das suas grutas para se alimentar dos peixes e a estrela ficava cada vez maior e o céu mais vermelho e um clarão imenso tomou a floresta e as corujas ficaram confusas e gritaram e os lobos ficaram confusos e uivaram e a estrela imensa caiu no riacho e esparramou as águas pelo bosque e o bosque se inundou e da cratera onde caiu a estrela saiu um cavalo amarelo e ele correu mais rápido que a luz e levantou poeira do solo e o solo ficou nu e revelou os animais e as plantas que morreram há muito tempo e os animais e as plantas que estavam vivos se agitaram e os animais se tornaram canibais e as plantas se tornaram carnívoras e o cavalo continuou correndo e bateu seu casco tão forte contra a raiz da sequoia que se abriu a terra sob ela e lá havia uma caverna e dentro da caverna havia uma luz e no centro da luz havia uma ostra e dentro da ostra havia uma ostra e o cavalo entrou em todas elas e a árvore gigante pendeu pro lado e sua copa cobriu a floresta e os leões cuja fome nunca findava vieram furiosos e cobriram a entrada da caverna com o corpo dos antílopes e das garças e das raposas e depois cobriram os corpos desses animais com briófitas e depois com pedras e mais musgos e a árvore tremeu como nunca e suas folhas caíram uma a uma e do lago restou pouca água e finalmente houve silêncio"


O meu corpo se cobriu de pólen e eu me sentei.  Eu encarei a videira e perguntei 'pra onde nós fomos?' e apertei o dedo bem fundo contra a videira e ela disse 'ai' e eu vi lá dentro o campo que surgiu nos meus sonhos, com toda sua infinitude e eu fitei o tronco e pus minhas pernas dentro dele. A lagarta que se arrastava pelos galhos parou de se mexer. Um manto de seda unificou as árvores. A menina que estava dentro da flor virou uma fruta e eu a comi. Entrei no tronco da videira e pisei naquele solo. Eu conheci a sensação e senti medo mas continuei.




domingo, 31 de março de 2013

poema de panela da primeira ferrovia do carma o medo do proprio corpo a injustiça a lavagem de algodão e a mentira que embeleza tudo e o ridiculo da dor e o ridiculo do esforço

todo dia o corpo é de noite
e tem corpo que anoitece antes da noite
e tem um espinho que entra
entra na boca e entra no dedo
e o trem passa longe porque não tem ferrovia aqui
e a morte eu vi uma vez era um coiote com três olhos
e toda voz no mundo canta que dá pra mudar
e chega no ultimo dia tudo é sempre o mesmo
e a maldição da criança é nunca jamais crescer
e tem o sorriso que você pensa que é alegria
a água quente é perigoso cair no rosto
o tio aparece pra perguntar que não fique sozinho
se a mãe viaja é porque precisa se locomover
se a mãe fosse um trem dava pra me levar com ela
só tem deus porque tem névoa
embaixo na rua o porão da rua
tudo o que não funciona é jogado lá embaixo
o labirinto não deixa nenhuma palavra se unir
uma mancha imensa cega qualquer pessoa
parece um sonho se você forçar bastante
a tontura depois o mal estar
das lampadas nem das tomadas é possivel ter o controle
que chegue um dia o dia que isso não será mais problema
e tudo fluirá perfeito como a parte mais etérea do mundo
e cada cheiro terá prazer em si próprio
e cada mão será uma mão suave
se o desejo é abraçar o mundo é possivel que o desejo  mude
e que seja unico o desejo de abraçar o que vem pra não ficar
se nada fica mesmo
chama a mãe que é o trem
embora ja tenha sido dito nunca se ouviu de verdade
a verdade da verdade
e o peso do peso
e a vertigem que tem no mundo
e toda dor que existe no mundo
nunca é dor suficiente
e as pessoas valem tanto
tem o chão de gelatina
as vezes é de areia e voa com um sopro
e deus queira ele ser um sopro
que sopra o habitual
pra elevar o homem a um lugar
onde não faz mais sentido o impulso
se deus está dentro dele
é possivel que ele esteja morto
e como uma bruxa vive sozinha
criando poções pra achar a cura
a cura dança sozinha
depois que inventaram a cura
pelo amanhã ser tão urgente
espero que tudo corra pelo amanhã
e toda obrigação se tornará uma amiga
e até o fim da vida não haverá paz
mas o bom abraço


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

mansão

Como sinto uma dor aguda ás vezes, chamo das partes claras do meu quarto duas irmãs, que aparecem lentamente e serenas. Elas são pequenas, mas velhas, e usam uma máscara de flores pra não parecerem gente, e tem vozes incrivelmente graves pra não parecerem gente e contam histórias pra mim que eu jamais ouvi antes. 'Você sabe', diz a primeira, 'que esta árvore que bate os galhos no seu rosto enquanto você dorme não dará fruto algum, é a árvore do não fruto e da não flor, suas folhas são suaves mas não caem e não param de nascer, a árvore precisa engolí-las de novo, do contrário, desmoronará e se tornará um monte, um monte de plantas que não saem dali, e então se tornará grama e então a árvore não terá nunca valido a pena." A irmã segunda, que tem uma coisa engraçada de não piscar sem apertar o dedo anular, contesta 'é o vento!' e contesta mais 'o vento sopra a árvore com tanta força, pra levar suas folhas, e com tanta mais força ela as mantém, e com tanta mais força ela as prende por dentro, para não perdê-las, mas o vento é mais forte que tudo e sopra lá dentro e lá dentro, da árvore, estão os insetos. Fecho meus olhos porque é tarde, e amanhã corre o boato de que haverá algo logo cedo.

logo cedo

Eu. Um anão em cima do meu guarda roupa me olhando, imóvel. Não sei o que fazer, apenas espero. Após uns longos minutos ele mexe os pés, como que impaciente. 'Você sabe', diz ele 'que o tempo já passou há muito tempo' diz ele 'e que você está em cima da hora, com essas roupas de dormir, e essa cara de sono e este cabelo de sono e um hálito insuportável, que temo você já tenha aprendido a suportar' diz ele. Abro a janela pois faz tanto calor, embora o céu esteja ainda negro como se fosse noite. O anão, lá em cima, anda de um lado pro outro. 'Eles te esperam, há um bom tempo, e estão ficando impacientes' enquanto diz isso, mexe a orelha direita circularmente como se o vórtice estivesse ali: 'Eles não são obrigados a esperar por você ou mesmo pensar em você, nem sequer consideraram um encontro. Este é um interesse totalmente seu. As portas daquele lugar continuarão se abrindo e fechando como o habitual, e tudo o que é habitual hoje continuará habitual sempre. Agora, é comum que você não vá, e se deite e volte pro seu sono, você esquece deles e eles tão mais facilmente se esquecem de você. Porém me pergunto, se você esqueceria mesmo, da roda girando lá fora, com o ruído ensurdecedor e com tudo se convergindo a ela. Eu respondo que não e aconselho que se levante agora e que corra tanto quanto possa pois a ruína já gangrenou em suas pernas e na ponta de seu nariz e em seus lábios e digo também que corra mais e mais e mais porque todo o seu esforço será pouco para compensar o abandono e o descaso'

O endereço

Era á direita. Mas partindo de qual direção? Ele me disse que haveria um pântano, depois um deserto, então uma cidade cheia de luzes e construções inacabadas e nessa cidade outro pequeno deserto e virando á direita eu veria, a mansão, com seus portões habituais. Ando tentando disfarçar que não sei pra onde estou indo, penso em perguntar pra senhora que está parada na calçada mas temo que me dirigindo a ela eu ouça palavras estranhas que uma vez já ouvi serem suficientes pra trazer ao dia o demônio que atenta o espírito. Aliás percebo que, não somente ela, mas também umas outras nos dois lados da rua observam e cochicham. Começo a suar e aperto os passos, mas não demora para eu tropeçar num paralelepípedo que se salientava logo á frente. Eu não olho mas ouço rirem, uma delas tenta conter o riso abanando com a mão e se vira em seguida. Eu me levanto e com mais pressa viro a primeira rua, não importa onde dê. A mansão está em algum lugar.
A rua onde entro é um beco estreito com duas bancas cada uma de um lado atrás das quais estão um homem segurando caixotes com alfaces podres e uma mulher bem velha ou cansada lavando peixe. Olho para suas mãos habilidosas com a faca, e a faca no peixe e o peixe vivo e penso de onde vem esses peixes será. Olho para atrás do vestido encardido da mulher e percebo que uma criança que deve ser filha sua mexe numa poça imunda que se formou no chão, então faz uma cara de surpresa e tira um peixe, o entregando para a suposta mãe, e faz isso de novo e de novo. Tira dali uns 15 peixes, todos enormes e com um cheiro fortíssimo. A mãe os corta no meio e joga do outro lado, para o homem com os caixotes de alface. Ele envolve o peixe com sua alface podre e come, insaciável. Sigo e me deparo com uma pequena floricultura. Não há ninguém lá, então resolvo entrar. Pergunto á atendente 'Ei, onde fica a mansão?', algo deve estar errado pois ela não responde. Me aproximo e tento ser mais claro 'Ei, com licença, você sabe onde fica a mansão???', mas ela novamente não responde. De repente, percebo que estavam ao meu lado uma mulher de meia idade e um adolescente. Me olhando suponho, pois notei que viraram os olhos. Por não saber o que fazer, pergunto a eles 'A mansão, sabe onde fica, por favor ', a mulher hesita um pouco, olha para o garoto do seu lado, ele sussurra algo e ela responde que não, enquanto tenta evitar um sorriso cínico que escapa por entre seus lábios. Me viro para sair mas minha blusa enrosca num parafuso da gôndola e derrubo os ramos que estavam lá. Me abaixo para pegar, alguns rolaram para perto do pé da atendente. Agachado, pego um por um e percebo que todos continuam no mesmo lugar. Coloco tudo de volta e peço desculpas um pouco atordoado, mas eles parecem não notar nada. Ao deixar o lugar olho pra cima um pouco e me amaldiçoo por não ter visto antes. Parece a mansão. Parece longe também, mas vê-la já é um caminho.

Andar

Eu ando então, tento evitar as ruas movimentadas mas me perco muitas vezes e penso se não é melhor seguir mesmo pelas ruas movimentadas. Sigo assim, entre as grandes ruas e alguns atalhos até chegar próximo do que parece o pequeno deserto que o anão havia me alertado antes. Vejo ao longe, sem tréguas, uma cortina de areia imensa, no deserto minúsculo, penso em correr de volta, mas sinto um mal estar por parecer precipitado da minha parte. A cortina não para e eu me cubro com os braços. Os grãos entram no meu nariz e na minha garganta. Por um instante eu aguento mas tenho dúvidas se não é melhor voltar e tentar outro caminho. Olho pra trás e devido á tempestade vejo apenas silhuetas, silhuetas observando, distante, imaginando onde dará tudo isso, esperando o incrível momento onde poderá-se rir tanto, tanto, que tudo terá valido a pena, a desgraça e a resignação. Apesar disso continuo, com  a garganta seca e o nariz entupido, tentando a todo custo me esquivar da cortina interminável que me atinge. E assim, aos poucos, percebo se formar adiante, o que parece uma casa. Chama a atenção seu tamanho. Conforme passa a tempestade vejo melhor. Deve ser ali mesmo. Devem estar me esperando há um bom tempo. Devem estar impacientes. Provavelmente eu levarei uma bronca ao chegar. Não deverão inclusive achar legal que as roupas estejam cheias de poeira e com cheiro de crisântemo e peixe. E se perguntarem que caminho peguei, eu não saberei responder. Antes de continuar me permito sentar um pouco na grama, que aqui é mais esverdeada, para então me recompor. Com a minha própria saliva tento ajeitar o cabelo e limpar o sapato.

Portões

Portões. 'O único portão', tinha dito o anão. Ando por todo o perímetro da mansão. Alguns de seus salões são cobertos por vidros e vejo lá dentro várias pessoas sentadas e conversando. Percorro ás suas voltas e não encontro a entrada exatamente. Tateio a parede pois pode ser que eu não esteja enxergando devidamente por conta da areia. Dou a volta três vezes por toda a mansão. Na terceira, as pessoas que estão no salão de vidro claramente se exaltam e um pequeno rumor tem início. Volto um pouco o caminho, pra ver se é possível, de longe, encontrar a entrada. Infelizmente sou obrigado a rodar toda a propriedade de novo. Algumas pessoas do salão de vidro encostam e viram a cabeça para assistir o ridículo espetáculo. Corro e me encosto atrás de uma viga protegida do sol escaldante. Um homem que, ao que tudo indica, é o segurança do local sai detrás de uma das vigas. Eu então o chamo, com desconfiança, ele olha e eu pergunto 'A entrada, onde fica???' -'A entrada' diz ele, 'A entrada', repete, no que continuo 'Sim, eu rondei todo o lugar e não encontrei porta nenhuma, talvez eu esteja no lugar errado mas mesmo que esteja é muito importante para mim agora saber por onde as pessoas entraram aqui'. O segurança, como que já esperando a pergunta responde com um sorriso inocente 'Sim, claro, é preciso que se saiba por onde se entra, do contrário, como entrará?' Ele põe seu braço em volta do meu pescoço e olha pra cima, uns 15 metros acima. Avisto ali então uma porta, cercada por uma alvenaria toda cinzenta e maravilhosamente habitual e aberta. 'Bem', diz o segurança da mansão, acredito que o senhor esteja atrasado já que não conseguiu identificar a entrada. Talvez seja de má fé minha se eu não te der alternativas agora mas você pode entrar por outro lugar também. Vem aqui', ele me puxa gentilmente e caminha pelo meio jardim, onde fica uma escultura de alumínio de um rosto, sem olhos, mas com uma expressão rude e inflexível e também uma fonte, desligada e já bem antiga aparentemente. Ele continua andando pelo jardim até perto de um bosque, há quase 15 metros de distância da mansão. Puxa então uma alça no chão, com alguma força, e levanta a portinhola, coberta de poeira e lama e musgo. 'Eu só posso te ajudar até aqui. Na verdade eu não sei exatamente pra onde este caminho leva. Mas já vi pessoas entrando desesperadamente por ela. Dias depois, estavam lá dentro, no salão de vidro, sentadas e conversando. Já vi algumas caídas, mas toda vez que uma nova pessoa chegava e se perdia, lá estavam eles observando, calados e sorridentes. Eu espero que além disso, tudo dê certo lá dentro, pois já passa da hora, e há a impaciência, a vida é curta, a estrada é longa e árdua, a tempestade vem sempre, e ainda assim se chega. Eu espero que dê certo lá dentro, do contrário, penso que talvez você tenha um pouco mais de dificuldade de sair.''

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

água

da próxima vez quem sabe. Tem um lugar agora que conheço, é o lugar onde está deitado um corpo que parece o meu, com sua boca aberta e com um peixe tigre se debatendo lá dentro. Quando abriram os portões desse lugar, talvez até tivessem imaginado, talvez não, sobre as águas que entrariam. Não há remédio. O sono leva tudo, como a morte, mas ao contrário da morte, o sono não é de todos. Algo foi levado e o sono, o sono não veio, finalmente os sonhos abandonaram.  Cada coisa no seu espaço, de onde jamais deveria ser tirada. Na perfeita harmonia do mundo. Tudo em seu devido estado e tempo, conforme é sempre. Sempre estar agora. Os vultos vem e vão detrás do poste e não gostam de ser observados, no entanto porque eles saem á luz? De quem era aquela voz suave que me guiou até aqui? Eu olho pra trás quando dizem que se deve olhar pra frente mas todos os lugares são o meu passado. A vida está pendente e nunca haverá silêncio. Amenizar o grito. Amanhã é dia de jogar bola, esperamos que o dia esteja claro e fresco e que ninguém desista. Depois do jogo conversaremos e contaremos umas piadas, então riremos e contaremos umas outras, e quando o dia estiver virando outro dia contaremos tantas quanto for possível até que o riso subsista por si só sem que ninguém precise criá-lo. A criação é divina. O martírio sutil. Venta na estrada de volta, pra casa. A família é toda estranha. A amizade é toda estranha e o amor é o diabo. A violência conforta, a tristeza diz que sim e a gente vai então. Naquele beco nunca houve tantos corpos antes, amontoados, uns tentando entrar nos outros, pra ver se acham, a coisa perdida. Quando eu toco em alguém, quero entrar lá, pra ver com aqueles olhos, o que não consigo enxergar com os meus. A semana que passou se parece com a que passa, exceto que o sorriso é mais sincero. Muitas outras se passarão e pra cada resposta muda que foi ouvida haverá um suplicio igualmente mudo, porque eu não estarei satisfeito nunca.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

entra em casa. Faz barulho no assoalho. Ninguém entra aqui há muito tempo, quando decidi trocar as fechaduras. Ontem as troquei novamente. O ladrão bate contra a porta, umas duas vezes apenas. Depois desiste e vai embora, a exaustão, a fadiga. Eu olho pela janela, o ladrão cansado, levando em suas costas curvas o peso de todo roubo. La dentro, acendo uma fogueira, para que possa dormir. Só o fogo traz a calma, que me faz dormir, e o calor, que me faz dormir. A fogueira nunca se apaga. O nunca é breve e vejo cinzas.
De novo na janela, eu observo, as pessoas que observam pela janela. Vejo esta moça, em cuja porta cansado bate o ladrão. Ela corre até a porta. Ele prestes a partir. Ela destranca a porta. Vira a chave dezessete vezes. Ele partindo. Ela o chama e o toca no ombro. Eu sou o ladrão, diz ele, eu sou o ladrão, diz ela também. Protejo o mundo da minha furia, do meu anseio de roubar-lhe tudo. Procuro algo pra levar daqui, o que você tem? Eu tenho minha carcaça e a minha alegria, que é pequena mas que me faz continuar. Esta eu já não preciso, de lá fora peguei tudo o que é imenso, inclusive a alegria. E ela volta sempre, me faz repensar e olhar de volta para o saco, pra ver se eu a peguei de fato. Tem bolo. Me dê um pedaço do bolo. O ladrão pede.
Olho para a casa ao lado, mora sozinho um rapaz, que sente culpa por ser ainda rapaz e estar no limbo entre o triste senhor e a inocente criança. Vejo o rapaz descascando batata como se não houvessem outras batatas. Aquela é a única batata, a que contém o sabor. Não há mais ninguém. Vejo o rapaz. Andando pela parede, de todas as formas possíveis, dando cambalhotas, diferentes cambalhotas dentro de seu quarto apertado. Ele pega um binóculo e olha pra fora. Depois desenha na parede em que caminha uma maçã do tamanho de uma melancia e uma formiga do tamanho de um dragão e um sorriso do tamanho de uma melancia. E eufórico volta a olhar pela janela, enquanto a noite vai e volta e o dia vai e volta também.
Eu olho mais pro lado e vejo a minha propria janela e eu dentro dela olhando para as outras janelas. Eu com uns olhos enormes, é proibido fechá-los. O que eu vejo no entanto, eu poderia responder por mim. Eu vejo meus olhos.

Uma vez toquei a seda e senti o ardor da seda, que ouvi ser infinito. Depois senti a seda se esvaindo dos meus dedos, que ouvi serem fortes. O que vem depois? Da suprema alegria. O verme da posteridade vem comer o que me resta, como o sol de amanhã que ofusca o de hoje e me adia a noite inevitavel, sempre mais escura. Eu abro a minha porta, dezessete vezes abro a minha porta e caminho até a casa da frente.
Lá está o binóculo. Olho através do binóculo a face que tudo busca. As coisas não são completas, eu prefiro acreditar, que é possível preenchê-las sempre, com coisas mais, comigo mesmo. As coisas não são um fim em si. Eu abro a janela da face que tudo busca, com seu binóculo, tiro de seu rosto, sua boca macia e molhada, não consegue se fechar. Seus braços frios não conseguem se mover e me deixam tocá-los. É noite, eu digo. É sim, responde. Eu seguro suas mãos por longas horas. Como se fossem as que me faltavam, pra segurar a seda suficientemente forte. O vento a essas horas, o verdadeiro senhor do mundo. O vento sempre esteve aqui e viu tudo levantar e desabar. O vento verá essa historia e será a testemunha, a única que conhecerá cada um de seus pontos que vão se formando conforme o tempo passa. E eu passo junto segurando essas mãos. Eu aperto essas mãos. Eu olho pra face, ainda buscando, além do que eu enxergo. Buscando em si mesma. Além do que. É tarde diz. É sim, eu concordo. Se é tarde é preciso que iremos. Onde? Em algum lugar senão aqui. Mas eu quero ficar (eu quero sim), eu também mas olhe. Olho pra baixo, o musgo envolvendo meus pés. As sementes germinando em minhas pernas. O braço congelado que antes era só frio. É bom assim, veremos depois. O vento assobia, pois concorda. Ou amaldiçoa. Vai ficar bem depois, bem depois, veremos depois. Vai sim. Eu largo aquelas mãos, e aquela boca sempre aberta e aqueles olhos sempre distantes, e a seda também. Passo algum tempo retirando a vegetação que encontra em mim terra fértil. Não digo adeus. A janela se fecha. Ouço passos. Passos pela parede com as maçãs desenhadas, com os bodes desenhados. Passos até o teto, e o abrir do telhado. E lá em cima subindo o rosto. E seu binóculo mirando longe. E o vento batendo no seu cabelo. E o vento batendo na minha alma. E as flores nascendo nas minhas pernas. Eu preciso fugir.